segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

A criança que fomos nos espia

Caminho na calçada de pedras com seus desenhos geométricos bicolores, pisando forte e apressada. As pernas cumprem seu papel como autômatas, a mente lá na frente, na outra esquina, nas tarefas do dia.

Não é uma rua qualquer, nem um trajeto irrelevante. É o cenário da minha infância, e embora ela não tenha se passado toda aqui, por alguma razão é o retrato daqueles tempos, da menina que eu fui um dia, a vida em seus primeiros passos.

Muitos anos se passaram e eu voltei para cá, me vi de volta ao cenário que nesses anos idealizei e protegi com pinceladas doces e cuidadas. O retorno foi ao mesmo tempo belo e estranho. Belo refazer meus caminhos de menina, agora com meus filhos. As idas à mesma praça, o armazém intocado, a estátua do leão, mesmo que em meio a muitas novidades e outros tantos desaparecimentos. Reatar o diálogo com o passado e brincar de repeti-lo, ser mãe e menina, misturado. Estranho, também. O passado se tornando cada vez mais presente, cristalizando as horas e os dias, num jogo de eterna imobilidade: ontem-hoje-sempre.

Preciso lançar minha flecha lá para frente, me desenredar dos fios dourados de um passado que começa a dominar o presente, sufocar o futuro. Corto minha autocondescendência, meus pensamentos em espiral, disciplina militar agora. Apito e marcho decidida, mais faço do que contemplo, realizo mais e idealizo menos, cumpro metas e afogo devaneios.

Passo friamente pela rua encantada da minha infância. Piso indiferente a mesma calçada, que quando criança percorria poeticamente, seguindo o zigue-zague, cuidando para não pisar fora do desenho. Não lanço olhares saudosos para o prédio do outro lado da rua. Me orgulho do meu inédito desapego, o assassinato da nostalgia. Sou uma criatura prática agora, preocupada com o concreto do instante, as contas a pagar, o currículo a preencher, os olhos no futuro.

O tempo segue. É um dia qualquer de outono. Percorro o trajeto habitual, as pernas autômatas, a mente lá na frente. Estou sozinha, as crianças nas suas atividades de escola. A luz amarela se infiltra por entre os jacarandás. O colorido remete ao passado, incontrolavelmente. Tento evitar, mas não consigo deixar de lançar um olhar de esguelha para o outro lado da rua. Congelo o olhar e o passo. Nas janelas amplas do segundo andar, uma menina magrinha de cabelos longos observa a rua. Está alheia à mulher imobilizada na calçada como quem vê um fantasma.

O passado retorna com força. Me sinto pequena e frágil. Mulher adulta que fingiu crescer, que precariamente aprendeu a vestir suas máscaras para entrar no jogo de ir, fazer e vencer. Mas que agora parece sem rumo, as máscaras caídas diante daquela menina imperturbável nos seus sonhos, confiante nos seus desejos. Não quero que ela me veja. O quem pensará a meu respeito? Terá ela me observado nesses tempos de marcha apressada e fria?

Receio o seu julgamento. Ela sabe o que quer e o que a apaixona. Cultiva a imaginação, a poética do cotidiano, os devaneios em espiral. Ela sabe que eles levam a lugares valiosos, ela parece conhecer os caminhos. E eu, eu me sinto despojada das armas do sonho e ignorante dos caminhos. Desaprendi a ser aquela menina. Vem uma vontade de chorar.

Passo de cabeça baixa, sem espiar. Mas enfim sinto que ela pousa seu olhar sobre mim com ternura, como quem diz: está tudo bem. Agarra esses fios da infância, eles te levarão a lugares incríveis ao longo da tua caminhada. Lembra apenas de não te enredar, não te perder aqui no que já foi. O que será pode ser tão lindo como o que passou. Carrega contigo a memória como carga leve e renovadora. Não tenha medo de sonhar como uma menina. Nem tenha medo do futuro.


A brisa balança os jacarandás, deixa cair algumas folhas. Um pequinês que passa cheira a minha perna, a dona puxa a coleira. Na banca de revistas as pessoas se aglutinam, entre fumaça e copos plásticos de café. O zelador do prédio de consultórios varre as folhas com movimentos preguiçosos. O bebê no seu carrinho adormece. A vida segue, não muito diferente do que sempre foi. Tenho vontade de andar em zigue-zague sobre as pedras bicolores, mas ainda estou acanhada. Encho o peito, ergo a cabeça, me viro para o segundo andar do outro lado da rua. A menina se foi. Então olho em frente e sigo.


Letícia Möller

Texto modificado do original publicado em minha coluna no Portal Artistas Gaúchos, em 17 de agosto de 2015.

Nenhum comentário: