Semana vai, semana vem, os dias se sucedem velozes e a vida segue no piloto automático.
Olhos e mentes estão captados pelas tarefas a cumprir, como numa gincana maluca, e pelo canto sedutor da telinha do smartphone. Mergulho hipnótico de um ritual diariamente repetido, o dedo rola notícias, fotos, boatos, bobagens e fúrias, tendo os olhos por cúmplices fiéis e constantes.
Que falta da rua, da vida lá fora.
Quando adolescente, na distante era pré-telefonia móvel e pré-rede social, costumava andar de ônibus e me deslocar a pé. Eram momentos de prazer, ao mesmo tempo de interação e solidão, ação e contemplação.
A cabeça encostada no vidro, sacolejando, a espiar a vida logo ali. A eleger as casas favoritas, a memorizar o pequeno comércio, a observar pessoas e imaginar suas histórias. A criar narrativas mentalmente.
Os passos na rua, o contato humano próximo, os cheiros, sons e cores. Perceber de perto as belezas e as mazelas da cidade, sentir-se parte integrante de um todo.
Hoje agimos mais e contemplamos menos. Interagimos às pencas no mundo digital, mas estamos também mais sozinhos, fisicamente mais isolados.
Hoje o olhar não se perde. Hoje os pés não passeiam quase. Hoje a mente não divaga tanto.
Hoje pego táxis e me surpreendo ao chegar ao destino. Ignorei o caminho, o olhar baixo focando a tela.
A cada dia olhamos menos ao redor.
A cada dia nosso olhar se torna mais opaco e cansado.
A cada dia vamos menos para a rua.
A cada dia andamos menos nas calçadas.
A cada dia nos resignamos mais facilmente ao confinamento, renunciando ao espaço público.
A cada dia nos brutalizamos um pouco mais.
Tenho saudade do tempo longo, do tempo da espera e da contemplação. Do tempo das visitas e das conversas olho no olho. Das coisas simples e palpáveis, como um bolo quentinho, um telefonema de amigo, um bilhete escrito à mão, uma folga sem culpa, um bocejo sem preocupação. (sou uma saudosista, confesso)
O mundo na palma da mão é tentador, mas nos afasta do mundo fisico, concreto.
Não olhar para fora, não estar na rua, não estar em meio aos outros e com os outros, nos empobrece subjetiva e coletivamente.
É uma dura perda para o valor que tem a constante reflexão sobre os sentidos profundos da nossa vida. Contemplar, observar, transitar, estar com os outros, nos permite construir significações valiosas ao que nos cerca.
Mas não só. É ainda uma perda grave para a cidadania. O olhar para a vida na rua, para o mundo lá fora, nos aprimora como cidadãos. Apartados, confinados e passivos, perdemos muito, construimos pouco, não colaboramos.
Quero curtir menos posts e curtir mais lá fora. Romper com vícios sem sentido e ressignificar o que me rodeia. Desfazer as amarras da tecnologia e seu ritmo desumano. Encontrar mais pessoas ao vivo e a cores. Renovar meu tempo, meu ser e meu olhar.
Letícia Möller
Texto originalmente publicado em minha coluna
no Portal Artistas Gaúchos, abril de 2016.
no Portal Artistas Gaúchos, abril de 2016.