domingo, 25 de setembro de 2016

Andei lendo...

Nos últimos tempos, andei lendo:

Damas da noite, de Edgar Telles Ribeiro
Una mutevole verità, de Gianrico Carofiglio
Farenheit 451, de Ray Bradbury
Elogio da leitura, de Mario Vargas Llosa
Como curar um fanático, de Amós Oz
Poemas, de Mario Quintana
Os anos de aprendizagem de Wilhem Meister, de Goethe
Paisagem de porcelana, de Claudia Nina
Por que fazemos o que fazemos, de Mario Sergio Cortella

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quinta-feira, 19 de maio de 2016

Curtir lá fora

Semana vai, semana vem, os dias se sucedem velozes e a vida segue no piloto automático.

Olhos e mentes estão captados pelas tarefas a cumprir, como numa gincana maluca, e pelo canto sedutor da telinha do smartphone. Mergulho hipnótico de um ritual diariamente repetido, o dedo rola notícias, fotos, boatos, bobagens e fúrias, tendo os olhos por cúmplices fiéis e constantes.

Que falta da rua, da vida lá fora.

Quando adolescente, na distante era pré-telefonia móvel e pré-rede social, costumava andar de ônibus e me deslocar a pé. Eram momentos de prazer, ao mesmo tempo de interação e solidão, ação e contemplação. 

A cabeça encostada no vidro, sacolejando, a espiar a vida logo ali. A eleger as casas favoritas, a memorizar o pequeno comércio, a observar pessoas e imaginar suas histórias. A criar narrativas mentalmente. 

Os passos na rua, o contato humano próximo, os cheiros, sons e cores. Perceber de perto as belezas e as mazelas da cidade, sentir-se parte integrante de um todo.

Hoje agimos mais e contemplamos menos. Interagimos às pencas no mundo digital, mas estamos também mais sozinhos, fisicamente mais isolados.

Hoje o olhar não se perde. Hoje os pés não passeiam quase. Hoje a mente não divaga tanto.

Hoje pego táxis e me surpreendo ao chegar ao destino. Ignorei o caminho, o olhar baixo focando a tela.

A cada dia olhamos menos ao redor.

A cada dia nosso olhar se torna mais opaco e cansado.

A cada dia vamos menos para a rua.

A cada dia andamos menos nas calçadas.

A cada dia nos resignamos mais facilmente ao confinamento, renunciando ao espaço público.

A cada dia nos brutalizamos um pouco mais.

Tenho saudade do tempo longo, do tempo da espera e da contemplação. Do tempo das visitas e das conversas olho no olho. Das coisas simples e palpáveis, como um bolo quentinho, um telefonema de amigo, um bilhete escrito à mão, uma folga sem culpa, um bocejo sem preocupação. (sou uma saudosista, confesso)

O mundo na palma da mão é tentador, mas nos afasta do mundo fisico, concreto. 

Não olhar para fora, não estar na rua, não estar em meio aos outros e com os outros, nos empobrece subjetiva e coletivamente. 

É uma dura perda para o valor que tem a constante reflexão sobre os sentidos profundos da nossa vida. Contemplar, observar, transitar, estar com os outros, nos permite construir significações valiosas ao que nos cerca. 

Mas não só. É ainda uma perda grave para a cidadania. O olhar para a vida na rua, para o mundo lá fora, nos aprimora como cidadãos. Apartados, confinados e passivos, perdemos muito, construimos pouco, não colaboramos.


Quero curtir menos posts e curtir mais lá fora. Romper com vícios sem sentido e ressignificar o que me rodeia. Desfazer as amarras da tecnologia e seu ritmo desumano. Encontrar mais pessoas ao vivo e a cores. Renovar meu tempo, meu ser e meu olhar.


Letícia Möller


Texto originalmente publicado em minha coluna
no Portal Artistas Gaúchos, abril de 2016.


quarta-feira, 27 de abril de 2016

Andei lendo...

Nos últimos tempos, andei lendo...

Nihojin (Oscar Nakasato)
A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura (Mario Vargas Llosa)
A nascente, vol. 1 (Ayn Rand)
A nascente, vol. 2(Ayn Rand)
Um mapa todo seu (Ana Maria Machado)
Lugares mágicos: os escritores e suas cidades (Fernando Savater)
Morreste-me (José Luís Peixoto)
Guerra no Bom Fim (Moacyr Scliar)

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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Olhar de criança

Deixa-te levar pelo menino que foste (J. Saramago)


Ser mãe, pai ou ter uma criança por perto é relembrar aquele olhar. O olhar que um dia também foi nosso. Despido de vícios, desconfianças e pré-julgamentos. Olhar aberto e sedento por captar o mundo.

A criança é movida pela curiosidade e interessa-se por tudo o que a cerca. Cada passo traz novas descobertas e novos fascínios. As formigas, os gravetos, o pó que reluz ao sol. A tampa do pote, a dobradiça, o algodão. O mínimo, o minúsculo, tudo aquilo que se tornou opaco para o olhar adulto. Coisas prosaicas, pequenos tesouros.

Quem escreve para crianças esforça-se por resgatar este olhar. Fixa a tela em branco enquanto procura diluir a razão arrogante que orienta os dias em boas doses do encantamento simples, direto e puro do olhar infantil. Simples porque sem frescuras, direto porque sem rodeios, puro porque livre de preconceito.

Recuperar o olhar de criança, porém, não é fácil. Mas alguns escritores e poetas parecem simplesmente nunca tê-lo perdido. É o caso de Manoel de Barros e de Mario Quintana, para ficar em dois exemplos bastante conhecidos. Em “Lili inventa o mundo”, Quintana nos brindou com maravilhas do olhar infantil, mostrando que tinha muito viva dentro de si a criança que um dia fora:

“O hipopótamo é um bruto sapatão afogado”.
“O gato é preguiçoso como uma segunda-feira”.
“As pulgas saltam tanto porque também têm pulgas”.
“A esperança é um urubu pintado de verde”.

E talvez a mais linda delas:
“Sonhar é acordar-se para dentro”.

Nessa busca do escritor pelo olhar infantil, é precioso o pequeno volume de Javier Naranjo, “Casa das estrelas: o universo contado pelas crianças”, lindamente ilustrado por Lara Sabatier e editado no Brasil pela Foz.

Naranjo, escritor e professor colombiano do ensino primário, dá voz aos seus alunos, compartilhando conosco as suas palavras e o modo como as crianças definiram, em atividades de sala de aula, não apenas coisas tangíveis, mas também sentimentos e conceitos mais abstratos. Palavras e definições que revelam o olhar infantil sobre o amor, o ódio, o sol, a escuridão, o tempo, a morte, a família, a mãe, o pai, o louco e até mesmo o poeta.

O poeta é “alguém que descobriu algo no mundo” para Nelson, de 9 anos; é “qualquer pessoa que voa pelo ar”, para Sandra, de 7. A pessoa é uma coisa humana, a guerra é ficar com a vida uma bagunça. Água é a transparência que se pode tomar. Vazio é sem ninguém dentro. Ódio é quando não queremos fazer o que mandam. Medo é quando chega alguém lá em casa e eu levanto para ver quem é. Morte é uma coisa que não volta. Tempo é esperar os outros.

As palavras das crianças trazidas pelo livro emocionam, nos fazem rir e chorar. Talvez pela saudade da criança que fomos, talvez pela vontade de simplesmente resgatar aquele olhar. Deixar-se encantar pelo mundo, apesar de tudo: dos horrores vários, do tédio, da falta de sentido. Redescobrir a alegria de explorar e conhecer, de sentir com os dedos e com a alma.


Fundir o nosso olhar cotidiano com o jeito de ver o mundo das crianças não é uma experiência importante apenas para quem escreve literatura infantil, mas pode ser para lá de interessante e fonte de prazer para qualquer pessoa, ajudando a espanar o pó das nossas retinas,  renovando o olhar e criando novos significados.


Letícia Möller

Texto originalmente publicado em minha coluna 
no Portal Artistas Gaúchos, em fevereiro de 2016.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

A criança que fomos nos espia

Caminho na calçada de pedras com seus desenhos geométricos bicolores, pisando forte e apressada. As pernas cumprem seu papel como autômatas, a mente lá na frente, na outra esquina, nas tarefas do dia.

Não é uma rua qualquer, nem um trajeto irrelevante. É o cenário da minha infância, e embora ela não tenha se passado toda aqui, por alguma razão é o retrato daqueles tempos, da menina que eu fui um dia, a vida em seus primeiros passos.

Muitos anos se passaram e eu voltei para cá, me vi de volta ao cenário que nesses anos idealizei e protegi com pinceladas doces e cuidadas. O retorno foi ao mesmo tempo belo e estranho. Belo refazer meus caminhos de menina, agora com meus filhos. As idas à mesma praça, o armazém intocado, a estátua do leão, mesmo que em meio a muitas novidades e outros tantos desaparecimentos. Reatar o diálogo com o passado e brincar de repeti-lo, ser mãe e menina, misturado. Estranho, também. O passado se tornando cada vez mais presente, cristalizando as horas e os dias, num jogo de eterna imobilidade: ontem-hoje-sempre.

Preciso lançar minha flecha lá para frente, me desenredar dos fios dourados de um passado que começa a dominar o presente, sufocar o futuro. Corto minha autocondescendência, meus pensamentos em espiral, disciplina militar agora. Apito e marcho decidida, mais faço do que contemplo, realizo mais e idealizo menos, cumpro metas e afogo devaneios.

Passo friamente pela rua encantada da minha infância. Piso indiferente a mesma calçada, que quando criança percorria poeticamente, seguindo o zigue-zague, cuidando para não pisar fora do desenho. Não lanço olhares saudosos para o prédio do outro lado da rua. Me orgulho do meu inédito desapego, o assassinato da nostalgia. Sou uma criatura prática agora, preocupada com o concreto do instante, as contas a pagar, o currículo a preencher, os olhos no futuro.

O tempo segue. É um dia qualquer de outono. Percorro o trajeto habitual, as pernas autômatas, a mente lá na frente. Estou sozinha, as crianças nas suas atividades de escola. A luz amarela se infiltra por entre os jacarandás. O colorido remete ao passado, incontrolavelmente. Tento evitar, mas não consigo deixar de lançar um olhar de esguelha para o outro lado da rua. Congelo o olhar e o passo. Nas janelas amplas do segundo andar, uma menina magrinha de cabelos longos observa a rua. Está alheia à mulher imobilizada na calçada como quem vê um fantasma.

O passado retorna com força. Me sinto pequena e frágil. Mulher adulta que fingiu crescer, que precariamente aprendeu a vestir suas máscaras para entrar no jogo de ir, fazer e vencer. Mas que agora parece sem rumo, as máscaras caídas diante daquela menina imperturbável nos seus sonhos, confiante nos seus desejos. Não quero que ela me veja. O quem pensará a meu respeito? Terá ela me observado nesses tempos de marcha apressada e fria?

Receio o seu julgamento. Ela sabe o que quer e o que a apaixona. Cultiva a imaginação, a poética do cotidiano, os devaneios em espiral. Ela sabe que eles levam a lugares valiosos, ela parece conhecer os caminhos. E eu, eu me sinto despojada das armas do sonho e ignorante dos caminhos. Desaprendi a ser aquela menina. Vem uma vontade de chorar.

Passo de cabeça baixa, sem espiar. Mas enfim sinto que ela pousa seu olhar sobre mim com ternura, como quem diz: está tudo bem. Agarra esses fios da infância, eles te levarão a lugares incríveis ao longo da tua caminhada. Lembra apenas de não te enredar, não te perder aqui no que já foi. O que será pode ser tão lindo como o que passou. Carrega contigo a memória como carga leve e renovadora. Não tenha medo de sonhar como uma menina. Nem tenha medo do futuro.


A brisa balança os jacarandás, deixa cair algumas folhas. Um pequinês que passa cheira a minha perna, a dona puxa a coleira. Na banca de revistas as pessoas se aglutinam, entre fumaça e copos plásticos de café. O zelador do prédio de consultórios varre as folhas com movimentos preguiçosos. O bebê no seu carrinho adormece. A vida segue, não muito diferente do que sempre foi. Tenho vontade de andar em zigue-zague sobre as pedras bicolores, mas ainda estou acanhada. Encho o peito, ergo a cabeça, me viro para o segundo andar do outro lado da rua. A menina se foi. Então olho em frente e sigo.


Letícia Möller

Texto modificado do original publicado em minha coluna no Portal Artistas Gaúchos, em 17 de agosto de 2015.