terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

As crianças, o caráter e a coragem


No último 13 de janeiro, completou um ano o naufrágio do navio Costa Concordia na ilha de Giglio, no litoral italiano, episódio que ficou marcado pela fuga do capitão Francesco Schettino, abandonando a bordo mais de 4 mil passageiros e tripulação à própria sorte, num desastre que teve um saldo de 32 mortos, numa atitude diametralmente oposta à que se esperaria de um capitão: um papel de liderança, coragem e responsabilidade.

Um novo janeiro, uma nova tragédia, de grandes proporções: no dia 27, em Santa Maria, mais de 230 jovens perdem a vida em decorrência do incêndio na boate Kiss. Vergonhosamente, algumas autoridades municipais e estaduais revelam a preocupação de rapidamente se eximir e transferir qualquer responsabilidade.

Infelizmente, esses episódios trágicos não revelam atitudes isoladas e excepcionais de alguns cidadãos e representantes de instituições, mas espelham tristemente um modo de agir cada vez mais difundido hoje: autocentrado, individualista e distanciado, focado na autopreservação e na não assunção de responsabilidade. Arriscamos que esse modo de agir se torne regra de comportamento, se não o repelirmos com severidade e firmeza, se não houver a clara condenação moral desses atos e manifestações por parte da sociedade. O desafio está em não deixar que esse tipo de conduta se banalize. Que, aos olhos das novas gerações, ele não seja visto como normalidade, diante da qual calamos ou não mais nos surpreendemos.

Vivemos numa época de maior isolamento social e pouca interação presencial, de carne e osso (para além das múltiplas possibilidades de interação do mundo digital), que podem exacerbar sentimentos de individualismo, autopreservação e indiferença com relação ao outro. Além disso, vivemos em sociedades que valorizam o ter em detrimento do ser, onde o êxito pessoal é medido pelo sucesso econômico - ou pela aparência de sucesso. Fazemos o culto das celebridades e do dinheiro, e não o culto da postura ética diante da vida, do compromisso social, da nobreza de caráter e da coragem. Essas expressões soam mesmo anacrônicas, nos dias que correm.

Diante desse cenário, é fundamental que pensemos criticamente em como estamos formando as novas gerações e em que exemplos estamos dando às crianças. Serão elas capazes de se tornar adultos solidários e éticos, preocupados com o bem-estar do outro, capazes de se identificar com o sofrimento alheio pela humanidade que nos acomuna, conscientes de suas responsabilidades, capazes de ação corajosa diante de uma situação difícil?

É preciso valorizar os exemplos positivos dos quais tomamos conhecimento e que vez por outra são divulgados na mídia. Recordo do ocorrido também em Santa Maria em dezembro passado, quando o pitbull de uma família atacou a menina de 2 anos que brincava com ele no quintal de casa. O vizinho da família, o pedreiro Gilson Dias de Freitas, ao ouvir os gritos de socorro da mãe da menina, não pensou na sua autopreservação e arriscou-se a entrar no terreno e fazer cessar o ataque, salvando a vida da criança. A revoltante tragédia da boate Kiss, na mesma cidade, nos dá também um imenso exemplo de caráter e coragem, quando muitos jovens já libertos do perigo ficaram na calçada para socorrer outras vítimas, pegaram em picaretas na tentativa de abrir mais passagens para a saída da boate, e até mesmo voltaram a entrar na boate para salvar outras vidas - inclusive com o sacrifício de sua própria, como ocorreu com Leonardo Machado de Lacerda, Rafael de Oliveira Dorneles, Vinícius Montardo Rosado e possivelmente com outros jovens.

Valorizar esses exemplos não significa exaltar ou incentivar uma postura de bravura temerária. Aristóteles já definia a coragem como virtude, situando-a como o justo meio entre os extremos da covardia (a deficiência) e da temeridade (o excesso). O que importa, me parece, é tentar substituir uma mentalidade de culto das celebridades e das aparências em culto do caráter, da coragem e, por que não, do heroísmo, na definição que Joseph Campbell fazia do herói: aquele cuja jornada não é o seu engrandecimento, seu propósito não é a evasão nem o êxtase para si mesmo, “mas a conquista da sabedoria e do poder para servir aos outros”. Para Campbell, uma das muitas distinções entre a celebridade e o herói é que um vive apenas para si, enquanto o outro sabe agir em favor do próximo e é capaz de dar a sua vida por algo maior que ele mesmo. “Quando deixamos de pensar prioritariamente em nós mesmos e em nossa autopreservação, passamos por uma transformação de consciência verdadeiramente heroica”.

Como autora de livros para crianças, penso no papel importante que a literatura infantil e juvenil pode ter na formação de seres humanos solidários, com caráter e coragem. É através das narrativas que compreendemos a história (da humanidade e a nossa história pessoal), que nos aproximamos da compreensão dos seus dilemas e desafios, dos diferentes modos de agir diante de determinadas situações, dos modos de ser perante os outros e perante si próprio, das diferentes visões de mundo e posturas diante do mundo. Além disso, a literatura ajuda-nos a crescer, a descobrir o que somos e, talvez o mais importante, o que queremos ser.

Nesse sentido, como sugere Campbell, as narrativas arquetípicas, heroicas ou de formação - onde o protagonista-criança ou jovem supera seus medos e dificuldades, descobre o mundo e a si mesmo, cresce espiritualmente e passa a assumir uma postura de responsabilidade, ao reconhecer que é capaz de agir para transformar uma situação - podem fornecer uma referência importante para acompanhar o desenvolvimento infantil, uma fonte de inspiração e coragem no caminho do crescimento para uma vida comprometida com a defesa de valores éticos e com o bem dos que nos rodeiam.


Aristóteles. Ética a Nicômacos.
Joseph Campbell. O poder do mito.

 
Letícia Möller
Coluna para o site Artistas Gaúchos