sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Vidas entre as páginas

Gosto de pensar que é bom presságio encontrar objetos esquecidos entre as páginas de um livro. Como se deparar com um trevo de quatro folhas. Ou encontrar o mini-sonho dentro do sonho de creme, que dava direito a mais um sonho, nos veraneios da infância. É como se o acaso nos sorrisse.

Os livros novos, com aquele cheiro de recém-impresso, o papel flamejante, as páginas imaculadas, têm um poder de sedução inegável. Mas os livros de segunda mão (ou terceira,  ou quarta) trazem consigo, e apenas eventualmente, algo único: vestígios da vida dos leitores entre as suas páginas.

Ao comprar um livro usado, torço para encontrar dentro dele sinais dos leitores precedentes - para além de capas rasgadas e orelhas nas páginas (estas, na verdade, prefiro que não venham de brinde). E herdeira de muitos livros que pertenceram aos meus avós, sou grata cada vez que abro as páginas e encontro esses vestígios: frases sublinhadas, anotações, um objeto qualquer ali esquecido, ou quem sabe intencionalmente deixado. Já encontrei bilhetes de amigos, cartões de livreiros, papel de bombom Ouro Branco, folhinhas escritas pelo meu avô. São pistas de como eram como leitores, do que pensavam ou faziam enquanto liam, de quais livrarias preferiam. Mais valioso que isso, as marcas deixadas e os objetos encontrados têm o poder de materializá-los diante dos meus olhos, num mergulho em afeto e saudade que reconstrói as muitas conversas que tivemos.

O livreiro Federico Valera, também amante dos objetos deixados nos livros, e levando essa paixão bastante a sério, há anos se dedica a recolher tudo aquilo que encontra entre as páginas de velhos livros. Relacionando títulos e autores aos objetos encontrados, organizou uma exposição com uma centena desses pequenos tesouros, na sua livraria e osteria, a Libreria Baravaj e a LibrOsteria, em Milão (que podem ser encontradas no facebook). Além de vender livros raros (na sua própria definição, “libri introvabili, libri che non esistono più, libri scovati nell’immenso catalogo dell’usato”), Valera conserva o testemunho dos leitores passados e os compartilha. São bilhetes de trem, cartões postais, cartas, bilhetes de pai para filho, fotos eróticas, um desenho original de Emilio Tadini, e tanto mais. (na matéria “Le vite degli altri smarrite nei libri”, por Valerio Millefoglie, em Robinson, La Reppublica, 10/12/2017)

Testemunhos autênticos de vidas passadas ou simples resquícios que provavelmente não levam a nada? Prefiro alimentar a primeira hipótese, embora meu ceticismo contumaz, que tento (quase sempre sem êxito) afogar, leve para a segunda. Até porque, me dói admitir, eu mesma já fui artífice de uma falsa pista escondida dentro de um livro, que deveria levar a um escândalo familiar de proporções desconhecidas.

Lá pelos 10 anos, minha prima e eu, entediadas num domingo à tarde e sedentas de aventuras para além da segurança e da previsibilidade familiar, redigimos uma carta, com nossa letra infantil que tentava parecer ameaçadora, em que o seu autor, um homem terrível, chantageava nossa avó. Colocamos a carta dentro de um envelope branco e o enfiamos dentro de um livro, em uma estante com centenas deles, para ser encontrado no futuro. Tudo culpa de um desejo novelesco de povoar a nossa infância tranquila com alguma dose de intrigas e emoções. Anos depois, adolescente séria e preocupada, e ainda acreditando que nossa "fraude infantil" fosse capaz de êxito, tentei encontrar a carta para evitar que causasse problemas à minha amada avó. Nunca a encontrei. Ainda deve estar por lá, discretamente exalando seu potencial destrutivo, para ser encontrada por alguém, um dia.

À parte esse episódio da infância, decido por cultivar sem reservas o amor pelos testemunhos deixados entre as páginas, desejando acreditar na sua autenticidade e no que podem nos contar sobre o passado. Leituras feitas enquanto se vivia, ou vidas vividas enquanto se lia? A escolha é do freguês. O que importa, para os leitores fascinados pelos objetos esquecidos nos livros, é o sentimento de que "quel fruscio inaspettato, dell'oggetto che casca fuori dal libro, è così carico di vita e di energia da farmi sognare intere esistenze collegate proprio a quel libro…”, como me disse Valera em uma troca de mensagens.

E me dou conta de que o meu zelo excessivo com os livros faz com que eu não deixe vestígios pessoais, salvo passagens sublinhadas e pequenas anotações nas margens. Então agora, na leitura que faço à sombra das árvores, deixo aqui entre as páginas do livro a folha vermelha brilhante que acabei de ganhar do meu caçula. Folhinha que irá secar e esmorecer e certamente não interessará a ninguém. Mas é um começo. E sabe-se lá o que mais passarei a esquecer entre as páginas daqui para a frente.



 "Livros que não se encontram, livros que não existem mais, livros descobertos no imenso catálogo do usado”.
 “Aquele som inesperado, do objeto que cai para fora do livro, é tão cheio de vida e de energia que me faz sonhar existências inteiras ligadas àquele livro”.



Letícia Möller

Publicado originalmente em minha coluna no Artistas Gaúchos, em 11/01/2018

terça-feira, 29 de agosto de 2017

O livro, o leitor, o autor: magia de um encontro

A notícia da possível extinção ou profunda modificação do Programa Adote um Escritor, no âmbito da rede municipal de ensino de Porto Alegre, mobilizou e segue mobilizando não apenas os escritores gaúchos, mas autores de diversos estados brasileiros, professores, educadores, alunos, editores e demais pessoas preocupadas com educação e cultura, que fizeram questão de registrar depoimentos pessoais sobre a importância do programa e a necessidade de sua permanência e proteção.

Como já foi bem defendido por muitos, o Adote é um programa exemplar e de referência, e as modificações que a Secretaria de Educação pretende promover, pelo que até agora anunciado, não vêm aperfeiçoar o programa, mas antes torná-lo capenga, retirando de sua dinâmica bem construída elementos determinantes para o pleno êxito do seu objetivo: formar leitores literários, dentro da escola. Crianças que poderão conhecer o amor pelas narrativas e por toda a riqueza que abrigam, que poderão estender este amor aos seus pais e irmãos, que poderão crescer com a companhia dos livros, em progressivo alargamento de horizontes, e ser adultos leitores que sigam multiplicando o amor pela literatura, numa corrente que possa um dia nos tornar uma nação leitora, um país que valoriza verdadeiramente a cultura.

Não sou especialista em educação e falo a partir de minhas experiências pessoais de escritora: são elas que me fazem considerar como uma das melhores fórmulas para formar leitores a presença simultânea dos seguintes elementos:

  • o livro na mão da criança;
  • o professor-leitor, entusiasta das narrativas;
  • boas histórias contadas em palavras e imagens;
  • escolas que deem suporte e valorizem o professor-leitor;
  • o autor que vai à escola encontrar seus leitores;
  • a visita e participação direta da criança em ambientes e eventos culturais e literários.

Programas como o Adote um Escritor, a nível municipal, e o Autor Presente, a nível estadual (Instituto Estadual do Livro/RS), são concebidos de modo a garantir ao menos a maior parte desses elementos. Pretender cortar verbas destinadas aos ônibus para a visita dos alunos à Feira do Livro de sua cidade, e pretender prescindir do livro impresso, na mão da criança, privilegiando a sua experiência de contato com a literatura ao uso de plataformas digitais (o que não significa que estas não possam ser bons complementos na experiência leitora), são equívocos que se configuram como um retrocesso na formação do leitor criança.

Escritores que visitam escolas para conversar com as crianças e jovens sabem muito bem, por experiência pessoal e direta, a enorme diferença que é, de um lado, um encontro com alunos que leram previamente um livro do autor, com boa mediação de leitura por parte de sua professora ou professor, discutindo suas questões, personagens e dilemas, realizando atividades lúdicas e reflexivas sobre a narrativa lida, e, de outro lado, um encontro onde nenhum livro do autor foi conhecido pelas crianças, e por vezes tampouco pelos professores.

No primeiro caso, tem-se, na quase totalidade das vezes, encontros muito ricos e significativos, de trocas mútuas e aprendizado efetivo, com o poder de despertar ou renovar nas crianças e jovens a paixão pela literatura. Nesses encontros todos saem ganhando, enriquecidos intelectual e afetivamente pela experiência: leitores, autores, professores, comunidade escolar e por vezes também as famílias desses leitores entusiastas, em um contágio salutar e desejável. No segundo caso, tem-se, na maior parte das vezes, um encontro interessante mas certamente menos rico em significados para as crianças. Aqui, não raro, elas são colocadas no auditório da escola, diante de uma pessoa sobre a qual nada conhecem e da qual nada leram, e sem entender bem o que estão fazendo ali. Do autor, espera-se alguma performance capaz de entreter as crianças por um período, quem sabe estimular à leitura, como que por um milagre da sua fala. Desses encontros, as crianças talvez saiam com a ideia de que ouviram alguém supostamente importante falar, alguém que não verão mais e do qual nada lhes ficará; e o autor, por sua vez, talvez saia frustrado, tendo passado por um encontro que poderia ter sido tão profícuo, mas que se revelou desprovido de maior sentido.

Assim, junto-me a tantas vozes que, muito melhor que eu, já deram seu depoimento e fizeram a defesa deste que é um programa de importância evidente, que merece ser cuidado, protegido, preservado, possivelmente aprimorado, mas nunca reduzido, simplificado, podado.



Letícia Möller

Texto originalmente publicado em minha coluna 
no Portal Artistas Gaúchos, agosto/2017

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Estudo e(m) liberdade


Itália, 2014. No Festival della Mente, evento europeu dedicado à criatividade que acontece anualmente em Sarzana, litoral da Ligúria, a renomada escritora e professora Paola Mastrocola lança a provocação: o estudo desapareceu.

Em conferência intitulada justamente La sparizione dello studio, Mastrocola observa, com a bagagem de quem lecionou por mais de 20 anos no ensino básico, que se estuda cada vez menos. O hábito do estudo sumiu das escolas e das vidas de crianças e jovens. A imagem de um garoto debruçado sobre um livro, mergulhado na leitura, concentrado e por um momento esquecido de tudo mais, esta imagem estaria em franca extinção.

Ninguém fala no estudo, hoje. "Ninguém se importa”, aponta Mastrocola. Os jornais, a televisão e outras mídias não falam no estudo. E o mais preocupante, as escolas também não. Por paradoxal que possa parecer (e é), a própria palavra estudo foi afastada do mundo escolar. Escola e estudo não são mais expressões de óbvia e obrigatória conexão.

É como se falar no estudo fosse levantar um assunto aborrecido ao extremo. "Parece um assunto de velhos”, diz Mastrocola. Toleramos que os alunos vão a escola e não estudem. Não queremos perturbá-los muito com essa história de imersão nos livros. Afinal, estudar parece ser a antítese do divertimento. E queremos que nossos filhos e alunos se divirtam em tempo integral. Não queremos aborrecê-los, queremos entretê-los.

Esse grave diagnóstico do cenário escolar italiano nos reporta ao nosso contexto brasileiro. E aqui não vamos pensar apenas no ensino básico (do qual reconheço não estar tão próxima para fazer afirmações fortes): vou ousar dizer que o estudo também está desaparecido do ensino universitário. 

O que se pode ver é uma soma de ausência de iniciativa própria dos alunos ao estudo, por um lado, e a preocupação crescente das instituições de ensino em não entediar os alunos e não exigir muito esforço, por outro. Especialmente nas instituições privadas, a voz do aluno-cliente tem um peso quase definitivo, o que leva desgraçadamente a que essas entidades se preocupem prioritariamente em os acontentar e agradar. Nada de grandes exigências, nada de solicitar grandes leituras. Os professores devem ser dinâmicos e performáticos, capazes de manter a atenção de alunos pouco ou nada propensos à concentração e à profundidade. Uma atenção leve e divertida, sem o peso do esforço presente em realmente conhecer, compreender, contextualizar, problematizar.

A verdade é que hoje todos nós, jovens e adultos, priorizamos outras coisas. Vivemos um período de aumento de possibilidades (de entretenimento, de acesso à cultura, de informação) e de aumento do nível de consumo, se comparado a décadas atrás. A internet e o mundo que ela descortina estão permanentemente na palma da nossa mão. E tudo isso traz coisas belas e também avanços, aprimoramentos, democratizações. 

Porém, é inegável que a competição com o velho hábito do estudo e da leitura é ferrenha e desleal (se tudo está na internet, por que devo me esforçar em saber?). E isso talvez por culpa da mentalidade que nós mesmos ajudamos a criar e cultivar: quando nos preocupamos essencialmente em nos entreter e nos manter superficialmente ocupados, com coisas rasas que nos alienem, nos aliviem do cotidiano e não sobrecarreguem nossas mentes fatigadas. Quando valorizamos as celebridades sem conteúdo, cultuamos os famosos de ocasião e damos vivas à mediocridade. E assim tristemente nos enquadramos na definição de Vargas Llosa de sociedade do espetáculo.

Vivemos também uma época de descrença nos resultados que se pode colher com o esforço do estudo. Mastrocola novamente aponta que não mais acreditamos no estudo como gerador de trabalho: a ideia de que se eu estudar, automaticamente conseguirei uma boa colocação no mercado de trabalho e estarei garantido por toda a vida. E essa é uma outra questão grande demais para incluir aqui. De todo modo, podemos nos perguntar: deve ser esta a função principal do estudo?

Estudamos guiados por utilidade somente? Mais do que uma utilidade prática determinada, o estudo serve para nos enriquecer e aprimorar enquanto indivíduos e cidadãos, e antes de mais nada ele deve servir para nos tornar livres. Livres para sermos quem queremos ser, para desenvolvermos nossa personalidade e visão de mundo em múltiplas direções.

Estudo e liberdade. Estudo para a liberdade. E também estudo em liberdade. Diante do cenário escolar pouco favorável para o estudo aprofundado (pois se deve estudar com pressa, de modo fragmentado e na base de esquemas), é preciso lutar pela liberdade de verdadeiramente estudar.


Mastrocola defende 6 liberdades para o estudo - como ela diz, correndo o risco de ser chamada de velha nostálgica por querer salvar esta coisa anacrônica:

  1. A liberdade de ler livros inteiros;
  2. A liberdade de se levar o tempo que quiser, estudando;
  3. A liberdade de não produzir nada depois de se ler ou estudar, até mesmo por anos;
  4. A liberdade de se concentrar sobre um único ponto, ideia ou argumento, e aprofundá-lo;
  5. A liberdade de se fechar para o mundo;
  6. A liberdade de divagar na vertical: aprofundar-se sempre mais, buscando as referências do autor, e as referências das referências, sempre mais fundo.

Um luxo para poucos? Desejo, talvez ingenuamente, que não. Que o estudo em liberdade e para a liberdade possa se tornar direito e realidade na vida de todos nós. Que após um inverno prolongado do estudo desabroche uma primavera sedutora e permanente de amor pelos livros e pelo conhecimento. 

Links:
Site do Festival della Mente: www.festivaldellamente.it

Conferência La sparizione dello studio, de Paola Mastrocola: https://youtu.be/irDSf2JS-fY


Texto publicado originalmente em minha  coluna
no Portal Artistas Gaúchos,
em 04 de maio de 2017.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Andei lendo...

Pó de Parede, Carol Bensimon
Profissões para mulheres e outros artigos feministas, Virginia Woolf
Nas tuas mãos, Inês Pedrosa
Cenas mínimas (poesia), Maria do Carmo Campos
Osmose: Brasil e Alemanha em Quadrinhos, vários autores
O filho de mil homens, Valter Hugo Mãe
Autoimperialismo (ensaios), Benjamin Moser
O pequeno herói, Dostoiévski
Submissão, Michel Houellebecq
A outra praia, Gustavo Nielsen
Carolina (HQ sobre vida e obra de Carolina Maria de Jesus), Sirlene Barbosa e João Pinheiro
O duelo, Anton Tchekhov
Longe das aldeias, Robertson Frizero

E estou lendo...

Flores artificiais, Luiz Ruffato

* * *

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Do que a literatura me fez lembrar nesta virada de ano

Para a última semana do ano, passada na quietude das montanhas, peguei três livros meio que ao acaso e os pus na mala sem pensar muito. Um porque comprado há meses na promessa de ser prioridade, outro pela curiosidade de descobrir a voz do autor, mais o outro porque deparei com ele na estante atrevido, se convidando. Não nessa ordem, foram assim eleitos O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe, os ensaios de Autoimperialismo, de Benjamin Moser, e Um pequeno herói, novela de Dostoiévski.

Li no ritmo de antigamente, entenda-se, no meu ritmo de antigamente ter 15, 23 anos. Li que devorava páginas e mergulhava entre frases e quase perdia noção de quando e onde. Um ler veloz e profundo ao mesmo tempo, daqueles que há muito eram ausência.

Para mim que sou mais feliz no mergulho solitário que nas formas convencionais de passar férias, foi um belo modo de ver o ano se esvair nas promessas do novo ano (mais nos desejos que nas promessas, na verdade). Que não foi só de leitura o fim do ano, tenho que acrescentar. Imersões nos livros foram até que bem intercaladas com momentos de convívio muito amigo e prazeroso. Respiros bem-vindos para novo submergir em águas fundas.

Foram águas cristalinas, não turvas, de bom augúrio para o ano que inicia. A literatura desenhando imagens do que pode vir a ser se razão e emoção cultivarem bondade, coragem, esperança e amor à beleza.

Nesta virada de ano, a literatura me lembrou que a bondade pode sobreviver ou florescer até mesmo nos ambientes mais hostis. Que é preciso coragem para vencer em meio ao preconceito arraigado em mentes toscas, mas que se pode vencer. Que o amor suaviza arestas e diferenças. Como aconteceu com Crisóstomo e Isaura, com Antonino e Matilde, no romance de Hugo Mãe. Que a dignidade e a pureza de sentimentos são valores a defender com unhas e dentes contra a vilania, a hipocrisia, a inveja e a mediocridade, como fez o pequeno herói de Dostoiévski.

Com Moser, que é preciso lutar pela beleza, que não é capricho, mas necessidade humana. Que a feiúra das cidades abriga uma feiúra moral, e que esta sim é mais difícil de a gente se livrar (mas não podemos perder a esperança). Que importam as pessoas, mais que prédios, shopping centers, monumentos grandiosos, projetos ambiciosos ou conceitos tão geniais quanto vazios de sentido.

A literatura é fantástica por muitas razões, e dentre elas podemos dizer que é fantástica pelo poder de nos despertar do torpor, por dar alento à tristeza e à desesperança, por ajudar a corrigir rumos, lembrar do que importa, inflar nosso peito de valentia. 

Que em 2017 as histórias e as ideias, as narrativas e os ensaios, renovem nosso espírito adoecido nos acontecimentos deste ano sombrio que enfim nos deixa. Que nos tornem plenos de amor, coragem e esperança. Que possamos seguir na construção de nossa própria história, nos deixando conduzir por honestidade de intenções e sentimentos, pela empatia pelo outro, pela beleza de nossos atos e pela confiança em nossa capacidade de sermos melhores do que somos.

Canela, 31 de dezembro de 2016

Letícia Möller

Publicado originalmente em minha coluna
no Portal Artistas Gaúchos, em 02/01/2017

domingo, 25 de setembro de 2016

Andei lendo...

Nos últimos tempos, andei lendo:

Damas da noite, de Edgar Telles Ribeiro
Una mutevole verità, de Gianrico Carofiglio
Farenheit 451, de Ray Bradbury
Elogio da leitura, de Mario Vargas Llosa
Como curar um fanático, de Amós Oz
Poemas, de Mario Quintana
Os anos de aprendizagem de Wilhem Meister, de Goethe
Paisagem de porcelana, de Claudia Nina
Por que fazemos o que fazemos, de Mario Sergio Cortella

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quinta-feira, 19 de maio de 2016

Curtir lá fora

Semana vai, semana vem, os dias se sucedem velozes e a vida segue no piloto automático.

Olhos e mentes estão captados pelas tarefas a cumprir, como numa gincana maluca, e pelo canto sedutor da telinha do smartphone. Mergulho hipnótico de um ritual diariamente repetido, o dedo rola notícias, fotos, boatos, bobagens e fúrias, tendo os olhos por cúmplices fiéis e constantes.

Que falta da rua, da vida lá fora.

Quando adolescente, na distante era pré-telefonia móvel e pré-rede social, costumava andar de ônibus e me deslocar a pé. Eram momentos de prazer, ao mesmo tempo de interação e solidão, ação e contemplação. 

A cabeça encostada no vidro, sacolejando, a espiar a vida logo ali. A eleger as casas favoritas, a memorizar o pequeno comércio, a observar pessoas e imaginar suas histórias. A criar narrativas mentalmente. 

Os passos na rua, o contato humano próximo, os cheiros, sons e cores. Perceber de perto as belezas e as mazelas da cidade, sentir-se parte integrante de um todo.

Hoje agimos mais e contemplamos menos. Interagimos às pencas no mundo digital, mas estamos também mais sozinhos, fisicamente mais isolados.

Hoje o olhar não se perde. Hoje os pés não passeiam quase. Hoje a mente não divaga tanto.

Hoje pego táxis e me surpreendo ao chegar ao destino. Ignorei o caminho, o olhar baixo focando a tela.

A cada dia olhamos menos ao redor.

A cada dia nosso olhar se torna mais opaco e cansado.

A cada dia vamos menos para a rua.

A cada dia andamos menos nas calçadas.

A cada dia nos resignamos mais facilmente ao confinamento, renunciando ao espaço público.

A cada dia nos brutalizamos um pouco mais.

Tenho saudade do tempo longo, do tempo da espera e da contemplação. Do tempo das visitas e das conversas olho no olho. Das coisas simples e palpáveis, como um bolo quentinho, um telefonema de amigo, um bilhete escrito à mão, uma folga sem culpa, um bocejo sem preocupação. (sou uma saudosista, confesso)

O mundo na palma da mão é tentador, mas nos afasta do mundo fisico, concreto. 

Não olhar para fora, não estar na rua, não estar em meio aos outros e com os outros, nos empobrece subjetiva e coletivamente. 

É uma dura perda para o valor que tem a constante reflexão sobre os sentidos profundos da nossa vida. Contemplar, observar, transitar, estar com os outros, nos permite construir significações valiosas ao que nos cerca. 

Mas não só. É ainda uma perda grave para a cidadania. O olhar para a vida na rua, para o mundo lá fora, nos aprimora como cidadãos. Apartados, confinados e passivos, perdemos muito, construimos pouco, não colaboramos.


Quero curtir menos posts e curtir mais lá fora. Romper com vícios sem sentido e ressignificar o que me rodeia. Desfazer as amarras da tecnologia e seu ritmo desumano. Encontrar mais pessoas ao vivo e a cores. Renovar meu tempo, meu ser e meu olhar.


Letícia Möller


Texto originalmente publicado em minha coluna
no Portal Artistas Gaúchos, abril de 2016.


quarta-feira, 27 de abril de 2016

Andei lendo...

Nos últimos tempos, andei lendo...

Nihojin (Oscar Nakasato)
A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura (Mario Vargas Llosa)
A nascente, vol. 1 (Ayn Rand)
A nascente, vol. 2(Ayn Rand)
Um mapa todo seu (Ana Maria Machado)
Lugares mágicos: os escritores e suas cidades (Fernando Savater)
Morreste-me (José Luís Peixoto)
Guerra no Bom Fim (Moacyr Scliar)

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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Olhar de criança

Deixa-te levar pelo menino que foste (J. Saramago)


Ser mãe, pai ou ter uma criança por perto é relembrar aquele olhar. O olhar que um dia também foi nosso. Despido de vícios, desconfianças e pré-julgamentos. Olhar aberto e sedento por captar o mundo.

A criança é movida pela curiosidade e interessa-se por tudo o que a cerca. Cada passo traz novas descobertas e novos fascínios. As formigas, os gravetos, o pó que reluz ao sol. A tampa do pote, a dobradiça, o algodão. O mínimo, o minúsculo, tudo aquilo que se tornou opaco para o olhar adulto. Coisas prosaicas, pequenos tesouros.

Quem escreve para crianças esforça-se por resgatar este olhar. Fixa a tela em branco enquanto procura diluir a razão arrogante que orienta os dias em boas doses do encantamento simples, direto e puro do olhar infantil. Simples porque sem frescuras, direto porque sem rodeios, puro porque livre de preconceito.

Recuperar o olhar de criança, porém, não é fácil. Mas alguns escritores e poetas parecem simplesmente nunca tê-lo perdido. É o caso de Manoel de Barros e de Mario Quintana, para ficar em dois exemplos bastante conhecidos. Em “Lili inventa o mundo”, Quintana nos brindou com maravilhas do olhar infantil, mostrando que tinha muito viva dentro de si a criança que um dia fora:

“O hipopótamo é um bruto sapatão afogado”.
“O gato é preguiçoso como uma segunda-feira”.
“As pulgas saltam tanto porque também têm pulgas”.
“A esperança é um urubu pintado de verde”.

E talvez a mais linda delas:
“Sonhar é acordar-se para dentro”.

Nessa busca do escritor pelo olhar infantil, é precioso o pequeno volume de Javier Naranjo, “Casa das estrelas: o universo contado pelas crianças”, lindamente ilustrado por Lara Sabatier e editado no Brasil pela Foz.

Naranjo, escritor e professor colombiano do ensino primário, dá voz aos seus alunos, compartilhando conosco as suas palavras e o modo como as crianças definiram, em atividades de sala de aula, não apenas coisas tangíveis, mas também sentimentos e conceitos mais abstratos. Palavras e definições que revelam o olhar infantil sobre o amor, o ódio, o sol, a escuridão, o tempo, a morte, a família, a mãe, o pai, o louco e até mesmo o poeta.

O poeta é “alguém que descobriu algo no mundo” para Nelson, de 9 anos; é “qualquer pessoa que voa pelo ar”, para Sandra, de 7. A pessoa é uma coisa humana, a guerra é ficar com a vida uma bagunça. Água é a transparência que se pode tomar. Vazio é sem ninguém dentro. Ódio é quando não queremos fazer o que mandam. Medo é quando chega alguém lá em casa e eu levanto para ver quem é. Morte é uma coisa que não volta. Tempo é esperar os outros.

As palavras das crianças trazidas pelo livro emocionam, nos fazem rir e chorar. Talvez pela saudade da criança que fomos, talvez pela vontade de simplesmente resgatar aquele olhar. Deixar-se encantar pelo mundo, apesar de tudo: dos horrores vários, do tédio, da falta de sentido. Redescobrir a alegria de explorar e conhecer, de sentir com os dedos e com a alma.


Fundir o nosso olhar cotidiano com o jeito de ver o mundo das crianças não é uma experiência importante apenas para quem escreve literatura infantil, mas pode ser para lá de interessante e fonte de prazer para qualquer pessoa, ajudando a espanar o pó das nossas retinas,  renovando o olhar e criando novos significados.


Letícia Möller

Texto originalmente publicado em minha coluna 
no Portal Artistas Gaúchos, em fevereiro de 2016.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

A criança que fomos nos espia

Caminho na calçada de pedras com seus desenhos geométricos bicolores, pisando forte e apressada. As pernas cumprem seu papel como autômatas, a mente lá na frente, na outra esquina, nas tarefas do dia.

Não é uma rua qualquer, nem um trajeto irrelevante. É o cenário da minha infância, e embora ela não tenha se passado toda aqui, por alguma razão é o retrato daqueles tempos, da menina que eu fui um dia, a vida em seus primeiros passos.

Muitos anos se passaram e eu voltei para cá, me vi de volta ao cenário que nesses anos idealizei e protegi com pinceladas doces e cuidadas. O retorno foi ao mesmo tempo belo e estranho. Belo refazer meus caminhos de menina, agora com meus filhos. As idas à mesma praça, o armazém intocado, a estátua do leão, mesmo que em meio a muitas novidades e outros tantos desaparecimentos. Reatar o diálogo com o passado e brincar de repeti-lo, ser mãe e menina, misturado. Estranho, também. O passado se tornando cada vez mais presente, cristalizando as horas e os dias, num jogo de eterna imobilidade: ontem-hoje-sempre.

Preciso lançar minha flecha lá para frente, me desenredar dos fios dourados de um passado que começa a dominar o presente, sufocar o futuro. Corto minha autocondescendência, meus pensamentos em espiral, disciplina militar agora. Apito e marcho decidida, mais faço do que contemplo, realizo mais e idealizo menos, cumpro metas e afogo devaneios.

Passo friamente pela rua encantada da minha infância. Piso indiferente a mesma calçada, que quando criança percorria poeticamente, seguindo o zigue-zague, cuidando para não pisar fora do desenho. Não lanço olhares saudosos para o prédio do outro lado da rua. Me orgulho do meu inédito desapego, o assassinato da nostalgia. Sou uma criatura prática agora, preocupada com o concreto do instante, as contas a pagar, o currículo a preencher, os olhos no futuro.

O tempo segue. É um dia qualquer de outono. Percorro o trajeto habitual, as pernas autômatas, a mente lá na frente. Estou sozinha, as crianças nas suas atividades de escola. A luz amarela se infiltra por entre os jacarandás. O colorido remete ao passado, incontrolavelmente. Tento evitar, mas não consigo deixar de lançar um olhar de esguelha para o outro lado da rua. Congelo o olhar e o passo. Nas janelas amplas do segundo andar, uma menina magrinha de cabelos longos observa a rua. Está alheia à mulher imobilizada na calçada como quem vê um fantasma.

O passado retorna com força. Me sinto pequena e frágil. Mulher adulta que fingiu crescer, que precariamente aprendeu a vestir suas máscaras para entrar no jogo de ir, fazer e vencer. Mas que agora parece sem rumo, as máscaras caídas diante daquela menina imperturbável nos seus sonhos, confiante nos seus desejos. Não quero que ela me veja. O quem pensará a meu respeito? Terá ela me observado nesses tempos de marcha apressada e fria?

Receio o seu julgamento. Ela sabe o que quer e o que a apaixona. Cultiva a imaginação, a poética do cotidiano, os devaneios em espiral. Ela sabe que eles levam a lugares valiosos, ela parece conhecer os caminhos. E eu, eu me sinto despojada das armas do sonho e ignorante dos caminhos. Desaprendi a ser aquela menina. Vem uma vontade de chorar.

Passo de cabeça baixa, sem espiar. Mas enfim sinto que ela pousa seu olhar sobre mim com ternura, como quem diz: está tudo bem. Agarra esses fios da infância, eles te levarão a lugares incríveis ao longo da tua caminhada. Lembra apenas de não te enredar, não te perder aqui no que já foi. O que será pode ser tão lindo como o que passou. Carrega contigo a memória como carga leve e renovadora. Não tenha medo de sonhar como uma menina. Nem tenha medo do futuro.


A brisa balança os jacarandás, deixa cair algumas folhas. Um pequinês que passa cheira a minha perna, a dona puxa a coleira. Na banca de revistas as pessoas se aglutinam, entre fumaça e copos plásticos de café. O zelador do prédio de consultórios varre as folhas com movimentos preguiçosos. O bebê no seu carrinho adormece. A vida segue, não muito diferente do que sempre foi. Tenho vontade de andar em zigue-zague sobre as pedras bicolores, mas ainda estou acanhada. Encho o peito, ergo a cabeça, me viro para o segundo andar do outro lado da rua. A menina se foi. Então olho em frente e sigo.


Letícia Möller

Texto modificado do original publicado em minha coluna no Portal Artistas Gaúchos, em 17 de agosto de 2015.