terça-feira, 18 de setembro de 2012

A herança

Minha avó morreu no último inverno, e com ela a casa intacta com os objetos e lembranças acumulados em quase um século de vida. Um ano antes morrera meu avô, mas tudo permanecera inviolado como devido, pois lá seguia firme (ou quase) minha avó, agora patroa absoluta do lar - ainda que em seus devaneios. E enquanto ela estivesse viva, em nada se tocaria.

Por fim, era chegada a hora de enfrentar a casa e seus recantos, as portinhas escondidas e gavetas infindáveis. Os pertences de toda uma vida, aquilo que ano após ano juntamos, por afeto, capricho ou desleixo, deixando às gerações mais novas a tarefa inglória de lidar com o volume monstruoso. Em meio a achados comoventes que embargam a garganta e embaçam a vista (cartas, desenhos, fotos), outros achados pitorescos que divertem (Era a cara dele guardar uma coisa dessas!) e exasperam (Todas as edições da revista desde 1980?). E dê-lhe fitas-cassete de tangos e boleros da vó pululando das gavetas, os esmaltes e cosméticos vencidos há mais de década, os cadernos de receitas, os baralhos de carta, os vestidos de crochê das bonecas das netas. No gabinete do vô, a pasta organizada com os documentos de resgate da história da família, a coleção de moedas antigas em potes de vidro, as centenas de recortes de notícias variadas, a bizarra coleção dos mais horríveis poemas já publicados em jornal, com os quais, sádico, se divertia.

A casa era também repleta de livros, distribuídos por vários cômodos. Os livros da vó, literatura. Os livros do vô, tratados de história natural, teses sobre a origem do universo, volumes de física, muitas obras de filosofia da ciência, ensaios de história, filosofia, sociologia, psicologia, dicionários de todos os tipos. Um mundo que em grande parte acabei por herdar. A vontade era de acolher todos os livros, mas seria fisicamente impraticável. Me vi forçada a fazer um filtro, o que de qualquer modo não evitou que eu chegasse em casa com várias centenas de volumes.

O pequeno apartamento em que moro, onde os livros já se sobrepunham em desordem na biblioteca e pensávamos como fazer para ampliar o espaço e dar conta de ajeitá-los, foi subitamente inundado por caixas e mais caixas da nova herança de papel. E assim, dediquei aqueles dias a uma redescoberta afetiva dos títulos, enquanto removia o pó de cada um com cuidado, e carimbava as primeiras páginas para identificar a proveniência dos livros antes de misturá-los aos nossos. Os livros, enfim, estavam limpos, carimbados e organizados em pilhas pela sala. Faltava o espaço. Os meses passaram, os livros no chão e o pó de novo a pleno. Até que recebemos um complemento de herança, algumas estantes de madeira que estavam dando sopa, e finalmente tudo foi acomodado.

Foram naqueles dias de caos reinante, enquanto tentava organizar os livros por assunto entremeando o trabalho de boas interrupções para folhear páginas e ler orelhas e índices, que eu percebi que não poderia ter recebido melhor herança. Não apenas pelo meu amor aos livros em geral, mas porque dificilmente alguma outra coisa falaria mais sobre meus avós do que aqueles livros. Ao abrir um volume e descobrir as glosas do vô nas margens, os sublinhados, pontos de exclamação, discordâncias, as páginas especiais com a ponta dobrada, era como se o vô se materializasse de novo à minha frente, conversando conosco, discorrendo com paixão sobre seus autores preferidos e sobre os livros que balizavam sua compreensão do mundo. Ao separar as ficções da vó em literatura francesa, anglo-saxã, latino-americana, emergia nitidamente a sua figura amiga e silenciosa lendo na poltrona, fechando o livro quando os netos chegavam, mas com ele eternamente ao seu lado. A vó não tinha a eloquência do vô, era de conversa tímida, raramente falava sobre as histórias que estava lendo. Mas sua leitura voraz e permanente me contagiou para sempre.

Se os objetos que possuímos podem dizer muito sobre nós, sobre nossos gostos e estilo de vida, os livros tanto mais revelam, indicando uma particular visão de mundo, um modo de ser, de pensar e de viver. E os livros como herança são um presente valioso, a memória viva e pulsante daqueles que os possuíram. São a possibilidade de estender ou recriar o diálogo sobre ideias, histórias, conhecimentos e valores com as pessoas que amamos, nos dando a sensação de passar a perna na implacável finitude.

LETÍCIA MÖLLER
Texto originalmente publicado na minha coluna
no site Artistas Gaúchos, em setembro de 2012.

4 comentários:

Nathaly Barcelos disse...

Letícia, lindas e emocionantes palavras.
Tenho certeza que tua avó era uma grande mulher, assim como era brilhante poeta.
Moro em Bagé, cidade dela, já estivesse aqui?
Gosto muito do trabalho que fazes aqui no Blog, muito sucesso pra ti.
Um beijo.

Letícia Möller disse...

Cara Nathaly,

muito obrigada por tuas palavras gentis. Mas quero que saibas que minh avó que faleceu, retratada nesta crônica, não é minha avó poeta e bageense, Dolores Mascarenhas Cantera de Campos,e sim minha avó paterna, de origem uruguaia, Maria del Carmen Brunel Ludwig. Ambas eram grandes leitoras, mas minha avó Carmita não escrevia - "apenas" lia obsessivamente.

Minha avó poeta segue firme e forte do alto de seus 91, quase 92 anos. Há cerca de dois anos atrás publicou seu quinto livro de poesias, Círculos.

Claro que conheço Bagé, onde passei muitos verões da minha infância e que muito me inspirou - inclusive gerando a crônica que está aqui publicada, "Escritos no cair da tarde". Infelizmente, faz vários anos que não retorno.

Ibrigada mais uma vez pelo carinho e pela visita ao blog. Se quiseres conhecer meu trabalho na literatura infantil, deixo o convite para visitar minha outra casa: www.loveolivro.blogspot.com

Um beijo muito grande,
Letícia Möller.

Nathaly Barcelos disse...

Letícia,

do mesmo modo, tenho certeza de que era uma mulher extraordinária.

Uma grande alegria saber que a tua avó segue abrilhantando a poesia, é um grande orgulho para o povo bageense.

Posso estar cometendo um equívoco, mas tens algum parentesco distante com Domingos Mascarenhas?

Sou apaixonada pela história arquitetônica de Bagé e tenho uma afeição por o Palacete deste Deputado.

Chegasse a conhecer o casarão? Gosto muito de pesquisar a história dos casarões e suas fotografias antigas, mas nunca encontrei muito sobre este.

Me desculpe o incômodo Letícia e mais uma vez parabéns pelo teu trabalho e muito obrigada pela tua atenção.

Se um dia apareceres em Bagé, será um imenso prazer te conhecer.

Um beijo.

Letícia Möller disse...

Querida Nathaly,

terei muito prazer em continuar nossa conversa e trocar informações sobre Bagé. Quem sabe escreves para meu e-mail que está divulgado aqui no blog (leticiamoller@yahoo.com.br), ou me informe o seu e-mail, assim podemos seguir melhor com nossa conversa.

Um beijo grande,
Letícia.