Entrevista concedida a Alexandre Capilé (Editora Juruá), em ocasião do lançamento de meu livro, “Direito à morte com dignidade e autonomia” - março 2007
1- O que a motivou a escrever sobre um tema tão delicado e controvertido?
As questões da bioética sempre me fascinaram. Meu estudo do direito praticamente coincidiu com meu interesse nesta área, visto que comecei a pesquisar em bioética já no segundo ano da faculdade. Talvez este interesse se explique pelo fato de eu vir de uma família de muitos médicos... Assim, me instigava a busca por melhor compreender as interfaces entre os âmbitos das ciências da saúde, da ética e do direito. Neste percurso inicial de pesquisa, tive a felicidade de poder contar com a orientação da professora Judith Martins-Costa, a quem devo as primeiras lições de bioética. Com relação ao tema específico do final da vida, que abordo no livro, penso que contribuiu fortemente a motivar-me o meu envolvimento no “Projeto Literatura Infantil e Medicina Pediátrica: uma aproximação de integração humana” (PLIMP/Faculdade de Letras da PUCRS e Setor de Pediatria do Hospital São Lucas da PUCRS), quando, ao contar histórias às crianças hospitalizadas e aos seus familiares, acabei por ingressar em um contexto muito particular, felizmente nem sempre feito de doenças graves ou fatais, mas que de qualquer modo tornava evidente sua delicadeza e peculiaridade. Os sentimentos por vezes de esperança, por vezes de desalento e angústia, a força, o cansaço, o medo, as pequenas e grandes vitórias, as grandes tristezas. É certo que, em se tratando de pacientes crianças, há aspectos particulares envolvidos, e a questão da autonomia forçosamente vem relativizada em prol da proteção da criança (busquei abordar sucintamente esta situação específica em uma secção do livro). Na obra, porém, o foco é dado àqueles doentes adultos que, quando em estado terminal e em condições de capacidade e consciência, devem poder expressar sua vontade de forma autônoma (sempre informada) e, de acordo com seus valores, crenças e convicções, decidir como desejam transcorrer os últimos momentos de suas vidas. Conversas que tive com a amiga Lívia Pithan, jurista que também se dedica às reflexões bioéticas, contribuíram a sedimentar minha decisão de escrever sobre este tema.
2- Em seu livro é mencionado que o temor que as novas tecnologias não sejam utilizadas em beneficio do homem e da humanidade, e sim para concentrar o poder nas mãos de poucos, gerou a percepção acerca da necessidade de estabelecer-se certos limites ao desenvolvimento tecnológico e à realização da ciência. A senhora acredita que o conhecimento e o desenvolvimento tecnológico possam realmente ser freados e contidos?
Os novos conhecimentos científicos e biotecnológicos adquiridos nos trouxeram significativos benefícios à saúde e um incremento da qualidade e da expectativa de vida. De fato, vivenciamos um cenário de veloz concretização de muitos anseios – o alívio da dor, a superação da infertilidade, a libertação de doenças – graças ao desenvolvimento de novos fármacos, aparelhos e procedimentos médicos, de novas formas de reprodução humana e da pesquisa em engenharia genética. Contudo, os avanços das ciências biomédicas suscitam uma série de questionamentos de ordem ética, política e jurídica, acerca do modo de fazer ciência e acerca dos usos dos resultados das pesquisas e das novas tecnologias à saúde humana, e também ao ecossistema. Diante dos riscos comportados por um uso arbitrário dos novos conhecimentos científicos, e percebendo-se que seus efeitos alcançam as demais esferas da vida, faz-se indispensável compreender a ciência não como experiência isolada e auto-suficiente, mas como necessariamente indissociável do âmbito da ética (nesta direção se dá, justamente, o surgimento da bioética). Não compete à própria ciência valorar os dados e resultados que ela produz, nem suas possíveis aplicações. Deste modo, é legítimo que uma sociedade estabeleça limites de natureza ética e também jurídica à ciência e à tecnologia, de acordo com valores partilhados e considerados fundamentais. Aqui o importante papel do direito, ao conjugar à normatização os elementos de segurança e coerção. Todavia, com relação ao papel do direito, entendo ser necessário buscar um equilíbrio entre posturas extremas: de um lado, o que podemos chamar de “abuso normativo” (a máxima regulamentação e contenção da ciência, com escarso espaço para a liberdade e o desenvolvimento), e de outro, uma postura de “laissez-faire” (a omissão do direito em favor de uma ampla liberdade científica guiada pela fé inabalável no progresso) – idéia que pude desenvolver em um texto recente. Assim, não se trata de simplesmente frear o desenvolvimento da ciência, muito menos a aquisição de novos conhecimentos, o que é importantíssimo e ao meu ver imprescindível, mas de procurar conciliar a noção de liberdade científica e de esperança no progresso com a noção de responsabilidade e precaução quanto ao modo de fazer ciência e especialmente quanto aos possíveis usos e aplicações dos seus produtos, de forma a tutelar os valores básicos de uma sociedade.
3- A bioética surgiu da necessidade de se usar corretamente as novas tecnologias aos casos referentes à vida, saúde e morte. Qual o destino da ciência sem a ética?
Como afirma Edgar Morin, “a época fecunda da não-pertinência dos julgamentos de valor sobre a atividade científica terminou”. Uma ciência que reconhece a dimensão da reflexão ética é uma ciência capaz de conceber o enraizamento dos valores em uma determinada cultura e sociedade. É, para usar a feliz expressão de Morin, uma “ciência com consciência”. A ciência sem a ética trilharia um caminho certamente autoritário e obscuro, prescindindo da transparência de sua prática e de seus resultados, furtando-se ao debate público em torno de valores partilhados, à deliberação política para a elaboração de leis, e deste modo concentrando cada vez mais o conhecimento e o poder nas mãos de alguns, para satisfazer interesses (políticos e econômicos) particulares.
4- A senhora não acha preocupante o paciente ter o poder de decidir sobre o uso ou não de um tratamento proposto por um profissional capacitado, no caso do médico, sendo esse paciente leigo no assunto?
Em primeiro lugar, a informação é fundamental. Uma boa relação entre médico e paciente requer diálogo aberto e informação adequada acerca do quadro clínico, das opções de terapia e dos respectivos efeitos esperados, de modo a fornecer as melhores condições possíveis para a tomada de decisão. Penso, diversamente, ser preocupante um comportamento paternalista ou autoritário por parte de quem detém o conhecimento técnico-médico, como se a partir deste conhecimento técnico se pudesse deduzir, naturalmente e de forma unívoca, o rumo terapêutico a ser tomado em uma situação de terminalidade da vida. Nestas situações, ao meu ver, falam mais alto os valores e as convicções pessoais do paciente, devendo ser protegido o seu direito ao exercício da autonomia. Pensemos na hipótese em que ao paciente terminal simplesmente não fosse reconhecido espaço de manifestação e decisão, ou ao menos de participação ativa na tomada de decisão! Isto implicaria uma desconsideração da sua liberdade, da existência de uma esfera de sua vida que diz respeito, antes de tudo, a si próprio. O que significa morrer com dignidade? Diferentes respostas podem ser dadas a esta pergunta, o que dependerá da cultura ou dos valores individuais de cada paciente. Concordo com Ronald Dworkin quando diz que importa o modo como morremos. Muitos de nós gostaríamos que este momento final guardasse uma coerência com o modo como vivemos durante toda a nossa vida: com valores e convicções que cultivamos, que nos são caros.
5- Observando a situação pelo ângulo do médico, essa “liberdade”, esse “poder” proposto ao paciente não comprometeria a autoridade técnica e científica do profissional, inclusive vindo a médio e longo prazo comprometer sua capacidade profissional e estabilidade emocional?
Não, se entendermos que o dever do médico perante o seu paciente não é o de curar ou lutar pela cura em todos os casos e a qualquer custo, tampouco o de tomar as decisões pelo paciente. Ser um bom médico não deve ser sinônimo de um comportamento paternalista, de decidir no lugar do doente “pelo seu bem” (de que bem se trata?). Não vejo como o respeito à autonomia do paciente, e a preocupação do profissional de evitar posturas autoritárias, possa comprometer de algum modo a sua capacidade profissional ou a sua estabilidade emocional. Parece-me que os profissionais da saúde devem receber formação no sentido de saber lidar com as situações de terminalidade da vida e de saber distinguir entre os seus valores particulares e o pluralismo de valores que deve caracterizar o ambiente hospitalar e a assistência à saúde (neste sentido, importante reportar-se a Engelhardt). O médico tem o dever de informar o paciente, transmitir-lhe o conhecimento técnico, e não o dever (ou o direito) de valorar pelo paciente. De qualquer modo, entendo ser importante o reconhecimento da possibilidade de alegação de objeção de consciência por parte do médico, quando uma determinada prática ou procedimento contrarie fortemente os seus próprios valores – especialmente em casos de pedido de eutanásia ativa (o matar, para além do deixar morrer), em um contexto onde esta prática seja lícita.
6- Hoje em dia, como os tribunais têm tratado esse assunto, quando provocados a decidir?
Nos últimos dois anos, duas decisões tiveram grande destaque na mídia e reacenderam o interesse da opinião pública mundial e o debate em torno do tema do direito à morte: o caso de Terri Schiavo nos EUA, em 2005, e o caso de Piergiorgio Welby na Itália, em 2006. No primeiro, o diagnóstico era de estado vegetativo permanente, irreversível. Terri não deixara manifestação anterior de vontade por escrito, mas, segundo seu marido, ela lhe manifestara que não gostaria de viver naquelas condições. Após sete anos de batalha judicial entre o marido e os pais de Terri, e depois de esgotadas todas as instâncias e recursos, em 2005 foi enfim decidida a remoção do tubo que a alimentava, de modo a deixá-la morrer. No segundo caso, Welby, portador de uma forma de distrofia incurável que com o passar dos anos tornara-se muito grave, prendendo-o à ventilação mecânica e a tubos de hidratação e alimentação, encontrava-se consciente e completamente lúcido, e manifestara reiteradamente seu desejo de morrer, através de um diário, de um fórum on line de discussão sobre a eutanásia e mesmo com o envio de uma carta ao Presidente da República. Em 16 de dezembro de 2006, Welby tem seu pedido de sedação terminal, seguida de suspensão da respiração artificial, rejeitado pelo tribunal de Roma. O médico italiano Mario Riccio atende ao pedido de seu paciente e desconecta-o do respirador. A morte de Welby dá-se no dia 20 daquele mês. Como se pode perceber, estes casos diferem muito entre si, e diferem também da situação específica que abordo no livro. A limitação de tratamento de pacientes em estado terminal, o que costuma ser denominado de ortotanásia, é um tema menos polêmico, sendo o seu entendimento muito mais pacífico, no sentido de não prolongar um estado penoso quando o tratamento não pode mais surtir qualquer efeito positivo e quando a morte é iminente, especialmente se esta é a vontade do paciente. O que não se confunde com a eutanásia. Estas situações dificilmente chegam aos tribunais, sendo decididas pelo paciente ou seus familiares, quando este não pode se manifestar, em conjunto com os profissionais da saúde. Os comitês de ética hospitalares ou comitês de bioética, de composição sempre interdisciplinar, têm a finalidade de orientar o profissional acerca da conduta eticamente mais adequada e de auxiliar a dirimir conflitos que se estabeleçam entre a equipe médica e o paciente ou sua família. Isto faz com que, na maior parte dos casos, não seja absolutamente necessário ingressar-se na esfera judicial. Na minha opinião, isto é o ideal, que somente pode ser alcançado através de uma boa relação médico-paciente-família.
7- No Brasil, a senhora acha possível o avanço desse tema?
Sim, e boa parte das pesquisas e da produção teórica que se dedicam a este tema e a outras questões conexas apontam nesta direção, ao partirem de uma concepção plural e tolerante da sociedade em que vivemos. Outro motivo para acreditar em boas perspectivas neste tema é a recente resolução do Conselho Federal de Medicina sobre a prática da ortotanásia, ao autorizar a interrupção de tratamento médico extraordinário em pacientes em processo de morte irreversível. Além disso, pensando nos diversos temas da bioética, o debate público bem informado é fundamental, e para que isto seja possível precisamos de educação de qualidade, meios de comunicação sérios e comprometidos com a precisão das informações, e um amplo espaço de manifestação e deliberação coletiva. Enfim, temos pela frente um longo mas indispensável caminho a ser trilhado.
8- Por fim, o que a autora diria às famílias que por ventura venham a passar ou estejam passando pela situação de ter um familiar sofrendo com as técnicas aplicadas no seu tratamento, e aos médicos e advogados que eventualmente se deparem com esse tipo de situação durante o dia-a-dia profissional?
A todos, penso que o mais importante seja destacar o respeito ao doente terminal, àquele que se encontra nos momentos finais de sua vida, e que provavelmente sofre. Buscar compreender a sua condição e os seus sentimentos, e, principalmente, esforçar-se por “ver o mundo através dos seus olhos”, recordando os valores, convicções e posicionamentos manifestados ao longo de sua vida. Buscar o diálogo franco e o entendimento, com a família, a equipe médica, o eventual representante legal. Especialmente ao advogado, por ser normalmente estranho ao contexto hospitalar, ter presente a especificidade, a delicadeza e a fragilidade que envolvem este ambiente, os sentimentos em jogo e os valores particulares, que muitas vezes se confrontam, de uma série de atores: o paciente, os seus familiares, os médicos, os enfermeiros.
Montepulciano, 29 de março de 2007
sexta-feira, 23 de novembro de 2007
Entrevista
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