Itália, 2014. No Festival della Mente, evento europeu dedicado à criatividade que acontece anualmente em Sarzana, litoral da Ligúria, a renomada escritora e professora Paola Mastrocola lança a provocação: o estudo desapareceu.
Em conferência intitulada justamente La sparizione dello studio, Mastrocola observa, com a bagagem de quem lecionou por mais de 20 anos no ensino básico, que se estuda cada vez menos. O hábito do estudo sumiu das escolas e das vidas de crianças e jovens. A imagem de um garoto debruçado sobre um livro, mergulhado na leitura, concentrado e por um momento esquecido de tudo mais, esta imagem estaria em franca extinção.
Ninguém fala no estudo, hoje. "Ninguém se importa”, aponta Mastrocola. Os jornais, a televisão e outras mídias não falam no estudo. E o mais preocupante, as escolas também não. Por paradoxal que possa parecer (e é), a própria palavra estudo foi afastada do mundo escolar. Escola e estudo não são mais expressões de óbvia e obrigatória conexão.
É como se falar no estudo fosse levantar um assunto aborrecido ao extremo. "Parece um assunto de velhos”, diz Mastrocola. Toleramos que os alunos vão a escola e não estudem. Não queremos perturbá-los muito com essa história de imersão nos livros. Afinal, estudar parece ser a antítese do divertimento. E queremos que nossos filhos e alunos se divirtam em tempo integral. Não queremos aborrecê-los, queremos entretê-los.
Esse grave diagnóstico do cenário escolar italiano nos reporta ao nosso contexto brasileiro. E aqui não vamos pensar apenas no ensino básico (do qual reconheço não estar tão próxima para fazer afirmações fortes): vou ousar dizer que o estudo também está desaparecido do ensino universitário.
O que se pode ver é uma soma de ausência de iniciativa própria dos alunos ao estudo, por um lado, e a preocupação crescente das instituições de ensino em não entediar os alunos e não exigir muito esforço, por outro. Especialmente nas instituições privadas, a voz do aluno-cliente tem um peso quase definitivo, o que leva desgraçadamente a que essas entidades se preocupem prioritariamente em os acontentar e agradar. Nada de grandes exigências, nada de solicitar grandes leituras. Os professores devem ser dinâmicos e performáticos, capazes de manter a atenção de alunos pouco ou nada propensos à concentração e à profundidade. Uma atenção leve e divertida, sem o peso do esforço presente em realmente conhecer, compreender, contextualizar, problematizar.
A verdade é que hoje todos nós, jovens e adultos, priorizamos outras coisas. Vivemos um período de aumento de possibilidades (de entretenimento, de acesso à cultura, de informação) e de aumento do nível de consumo, se comparado a décadas atrás. A internet e o mundo que ela descortina estão permanentemente na palma da nossa mão. E tudo isso traz coisas belas e também avanços, aprimoramentos, democratizações.
Porém, é inegável que a competição com o velho hábito do estudo e da leitura é ferrenha e desleal (se tudo está na internet, por que devo me esforçar em saber?). E isso talvez por culpa da mentalidade que nós mesmos ajudamos a criar e cultivar: quando nos preocupamos essencialmente em nos entreter e nos manter superficialmente ocupados, com coisas rasas que nos alienem, nos aliviem do cotidiano e não sobrecarreguem nossas mentes fatigadas. Quando valorizamos as celebridades sem conteúdo, cultuamos os famosos de ocasião e damos vivas à mediocridade. E assim tristemente nos enquadramos na definição de Vargas Llosa de sociedade do espetáculo.
Vivemos também uma época de descrença nos resultados que se pode colher com o esforço do estudo. Mastrocola novamente aponta que não mais acreditamos no estudo como gerador de trabalho: a ideia de que se eu estudar, automaticamente conseguirei uma boa colocação no mercado de trabalho e estarei garantido por toda a vida. E essa é uma outra questão grande demais para incluir aqui. De todo modo, podemos nos perguntar: deve ser esta a função principal do estudo?
Estudamos guiados por utilidade somente? Mais do que uma utilidade prática determinada, o estudo serve para nos enriquecer e aprimorar enquanto indivíduos e cidadãos, e antes de mais nada ele deve servir para nos tornar livres. Livres para sermos quem queremos ser, para desenvolvermos nossa personalidade e visão de mundo em múltiplas direções.
Estudo e liberdade. Estudo para a liberdade. E também estudo em liberdade. Diante do cenário escolar pouco favorável para o estudo aprofundado (pois se deve estudar com pressa, de modo fragmentado e na base de esquemas), é preciso lutar pela liberdade de verdadeiramente estudar.
Mastrocola defende 6 liberdades para o estudo - como ela diz, correndo o risco de ser chamada de velha nostálgica por querer salvar esta coisa anacrônica:
- A liberdade de ler livros inteiros;
- A liberdade de se levar o tempo que quiser, estudando;
- A liberdade de não produzir nada depois de se ler ou estudar, até mesmo por anos;
- A liberdade de se concentrar sobre um único ponto, ideia ou argumento, e aprofundá-lo;
- A liberdade de se fechar para o mundo;
- A liberdade de divagar na vertical: aprofundar-se sempre mais, buscando as referências do autor, e as referências das referências, sempre mais fundo.
Um luxo para poucos? Desejo, talvez ingenuamente, que não. Que o estudo em liberdade e para a liberdade possa se tornar direito e realidade na vida de todos nós. Que após um inverno prolongado do estudo desabroche uma primavera sedutora e permanente de amor pelos livros e pelo conhecimento.
Links:
Site do Festival della Mente: www.festivaldellamente.it
Conferência La sparizione dello studio, de Paola Mastrocola: https://youtu.be/irDSf2JS-fY
Texto publicado originalmente em minha coluna
no Portal Artistas Gaúchos,
em 04 de maio de 2017.
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