A notícia da possível extinção ou profunda modificação do Programa Adote um Escritor, no âmbito da rede municipal de ensino de Porto Alegre, mobilizou e segue mobilizando não apenas os escritores gaúchos, mas autores de diversos estados brasileiros, professores, educadores, alunos, editores e demais pessoas preocupadas com educação e cultura, que fizeram questão de registrar depoimentos pessoais sobre a importância do programa e a necessidade de sua permanência e proteção.
Como já foi bem defendido por muitos, o Adote é um programa exemplar e de referência, e as modificações que a Secretaria de Educação pretende promover, pelo que até agora anunciado, não vêm aperfeiçoar o programa, mas antes torná-lo capenga, retirando de sua dinâmica bem construída elementos determinantes para o pleno êxito do seu objetivo: formar leitores literários, dentro da escola. Crianças que poderão conhecer o amor pelas narrativas e por toda a riqueza que abrigam, que poderão estender este amor aos seus pais e irmãos, que poderão crescer com a companhia dos livros, em progressivo alargamento de horizontes, e ser adultos leitores que sigam multiplicando o amor pela literatura, numa corrente que possa um dia nos tornar uma nação leitora, um país que valoriza verdadeiramente a cultura.
Não sou especialista em educação e falo a partir de minhas experiências pessoais de escritora: são elas que me fazem considerar como uma das melhores fórmulas para formar leitores a presença simultânea dos seguintes elementos:
- o livro na mão da criança;
- o professor-leitor, entusiasta das narrativas;
- boas histórias contadas em palavras e imagens;
- escolas que deem suporte e valorizem o professor-leitor;
- o autor que vai à escola encontrar seus leitores;
- a visita e participação direta da criança em ambientes e eventos culturais e literários.
Programas como o Adote um Escritor, a nível municipal, e o Autor Presente, a nível estadual (Instituto Estadual do Livro/RS), são concebidos de modo a garantir ao menos a maior parte desses elementos. Pretender cortar verbas destinadas aos ônibus para a visita dos alunos à Feira do Livro de sua cidade, e pretender prescindir do livro impresso, na mão da criança, privilegiando a sua experiência de contato com a literatura ao uso de plataformas digitais (o que não significa que estas não possam ser bons complementos na experiência leitora), são equívocos que se configuram como um retrocesso na formação do leitor criança.
Escritores que visitam escolas para conversar com as crianças e jovens sabem muito bem, por experiência pessoal e direta, a enorme diferença que é, de um lado, um encontro com alunos que leram previamente um livro do autor, com boa mediação de leitura por parte de sua professora ou professor, discutindo suas questões, personagens e dilemas, realizando atividades lúdicas e reflexivas sobre a narrativa lida, e, de outro lado, um encontro onde nenhum livro do autor foi conhecido pelas crianças, e por vezes tampouco pelos professores.
No primeiro caso, tem-se, na quase totalidade das vezes, encontros muito ricos e significativos, de trocas mútuas e aprendizado efetivo, com o poder de despertar ou renovar nas crianças e jovens a paixão pela literatura. Nesses encontros todos saem ganhando, enriquecidos intelectual e afetivamente pela experiência: leitores, autores, professores, comunidade escolar e por vezes também as famílias desses leitores entusiastas, em um contágio salutar e desejável. No segundo caso, tem-se, na maior parte das vezes, um encontro interessante mas certamente menos rico em significados para as crianças. Aqui, não raro, elas são colocadas no auditório da escola, diante de uma pessoa sobre a qual nada conhecem e da qual nada leram, e sem entender bem o que estão fazendo ali. Do autor, espera-se alguma performance capaz de entreter as crianças por um período, quem sabe estimular à leitura, como que por um milagre da sua fala. Desses encontros, as crianças talvez saiam com a ideia de que ouviram alguém supostamente importante falar, alguém que não verão mais e do qual nada lhes ficará; e o autor, por sua vez, talvez saia frustrado, tendo passado por um encontro que poderia ter sido tão profícuo, mas que se revelou desprovido de maior sentido.
Assim, junto-me a tantas vozes que, muito melhor que eu, já deram seu depoimento e fizeram a defesa deste que é um programa de importância evidente, que merece ser cuidado, protegido, preservado, possivelmente aprimorado, mas nunca reduzido, simplificado, podado.
Letícia Möller
Texto originalmente publicado em minha coluna
no Portal Artistas Gaúchos, agosto/2017