Gosto de pensar que é bom presságio encontrar objetos esquecidos entre as páginas de um livro. Como se deparar com um trevo de quatro folhas. Ou encontrar o mini-sonho dentro do sonho de creme, que dava direito a mais um sonho, nos veraneios da infância. É como se o acaso nos sorrisse.
Os livros novos, com aquele cheiro de recém-impresso, o papel flamejante, as páginas imaculadas, têm um poder de sedução inegável. Mas os livros de segunda mão (ou terceira, ou quarta) trazem consigo, e apenas eventualmente, algo único: vestígios da vida dos leitores entre as suas páginas.
Ao comprar um livro usado, torço para encontrar dentro dele sinais dos leitores precedentes - para além de capas rasgadas e orelhas nas páginas (estas, na verdade, prefiro que não venham de brinde). E herdeira de muitos livros que pertenceram aos meus avós, sou grata cada vez que abro as páginas e encontro esses vestígios: frases sublinhadas, anotações, um objeto qualquer ali esquecido, ou quem sabe intencionalmente deixado. Já encontrei bilhetes de amigos, cartões de livreiros, papel de bombom Ouro Branco, folhinhas escritas pelo meu avô. São pistas de como eram como leitores, do que pensavam ou faziam enquanto liam, de quais livrarias preferiam. Mais valioso que isso, as marcas deixadas e os objetos encontrados têm o poder de materializá-los diante dos meus olhos, num mergulho em afeto e saudade que reconstrói as muitas conversas que tivemos.
O livreiro Federico Valera, também amante dos objetos deixados nos livros, e levando essa paixão bastante a sério, há anos se dedica a recolher tudo aquilo que encontra entre as páginas de velhos livros. Relacionando títulos e autores aos objetos encontrados, organizou uma exposição com uma centena desses pequenos tesouros, na sua livraria e osteria, a Libreria Baravaj e a LibrOsteria, em Milão (que podem ser encontradas no facebook). Além de vender livros raros (na sua própria definição, “libri introvabili, libri che non esistono più, libri scovati nell’immenso catalogo dell’usato”), Valera conserva o testemunho dos leitores passados e os compartilha. São bilhetes de trem, cartões postais, cartas, bilhetes de pai para filho, fotos eróticas, um desenho original de Emilio Tadini, e tanto mais. (na matéria “Le vite degli altri smarrite nei libri”, por Valerio Millefoglie, em Robinson, La Reppublica, 10/12/2017)
Testemunhos autênticos de vidas passadas ou simples resquícios que provavelmente não levam a nada? Prefiro alimentar a primeira hipótese, embora meu ceticismo contumaz, que tento (quase sempre sem êxito) afogar, leve para a segunda. Até porque, me dói admitir, eu mesma já fui artífice de uma falsa pista escondida dentro de um livro, que deveria levar a um escândalo familiar de proporções desconhecidas.
Lá pelos 10 anos, minha prima e eu, entediadas num domingo à tarde e sedentas de aventuras para além da segurança e da previsibilidade familiar, redigimos uma carta, com nossa letra infantil que tentava parecer ameaçadora, em que o seu autor, um homem terrível, chantageava nossa avó. Colocamos a carta dentro de um envelope branco e o enfiamos dentro de um livro, em uma estante com centenas deles, para ser encontrado no futuro. Tudo culpa de um desejo novelesco de povoar a nossa infância tranquila com alguma dose de intrigas e emoções. Anos depois, adolescente séria e preocupada, e ainda acreditando que nossa "fraude infantil" fosse capaz de êxito, tentei encontrar a carta para evitar que causasse problemas à minha amada avó. Nunca a encontrei. Ainda deve estar por lá, discretamente exalando seu potencial destrutivo, para ser encontrada por alguém, um dia.
À parte esse episódio da infância, decido por cultivar sem reservas o amor pelos testemunhos deixados entre as páginas, desejando acreditar na sua autenticidade e no que podem nos contar sobre o passado. Leituras feitas enquanto se vivia, ou vidas vividas enquanto se lia? A escolha é do freguês. O que importa, para os leitores fascinados pelos objetos esquecidos nos livros, é o sentimento de que "quel fruscio inaspettato, dell'oggetto che casca fuori dal libro, è così carico di vita e di energia da farmi sognare intere esistenze collegate proprio a quel libro…”, como me disse Valera em uma troca de mensagens.
E me dou conta de que o meu zelo excessivo com os livros faz com que eu não deixe vestígios pessoais, salvo passagens sublinhadas e pequenas anotações nas margens. Então agora, na leitura que faço à sombra das árvores, deixo aqui entre as páginas do livro a folha vermelha brilhante que acabei de ganhar do meu caçula. Folhinha que irá secar e esmorecer e certamente não interessará a ninguém. Mas é um começo. E sabe-se lá o que mais passarei a esquecer entre as páginas daqui para a frente.
"Livros que não se encontram, livros que não existem mais, livros descobertos no imenso catálogo do usado”.
“Aquele som inesperado, do objeto que cai para fora do livro, é tão cheio de vida e de energia que me faz sonhar existências inteiras ligadas àquele livro”.
Letícia Möller
Publicado originalmente em minha coluna no Artistas Gaúchos, em 11/01/2018