É tempo de volta às aulas, e o
guri se depara com o que o aguarda no ano letivo. Conteúdos, projetos,
trabalhos, leituras obrigatórias. Os livros novos, com suas capas flamantes e
cheirinho de recém-impresso, o encaram em pilhas sobre a mesa.
Os livros, que anos antes faziam
o guri perder o sono de excitação e entusiasmo, e alisar as capas e espiar as
páginas imaculadas, agora o intimidam. Antes objetos mágicos, a convidar a um
mundo interessante a ser descoberto, agora apenas acenam com longas horas de
tédio e aborrecimento.
Ele já sabe que ouvirá, também
este ano, a clássica ladainha que não produz efeito, tantas vezes repetida: É
preciso ler!
E, se algum efeito produz, não é
certamente aquele desejado por pais e professores cheios de boas intenções. A
Importância da Leitura, e mesmo o tão incentivado Prazer de Ler, quando
enfiados goela abaixo encontram no guri um desertor - ou, na melhor hipótese,
um leitor de cara amarrada.
É preciso ler! Para não ser
ignorante. Para ser alguém na vida. E não só. É preciso ler e é preciso
entender o que o autor (esta entidade enigmática) quis dizer. E saber o que a
professora quer que ele entenda que o raio do autor quis dizer. E mostrar que
entendeu na Ficha de Leitura.
Não é exatamente um apelo
irresistível, nem canto sedutor de sereia. Quase inescapável que o guri verá a
leitura como fardo, pura obrigação, tempo perdido por ser (assim ele pensa) um
ato desconectado de si, privado de um sentido que lhe importe.
Daniel Pennac, em ensaio
encantador intitulado Como um romance
(L&PM), questiona a importância da leitura como dogma, e convida a que pais
e professores partilhem, com paixão, o seu próprio prazer de ler. Uma ideia
simples, mas com potencial revolucionário: “e se, em vez de exigir a leitura, o professor decidisse
de repente partilhar sua própria
felicidade de ler?”.
Claro é que os professores enfrentam
certas limitações na autonomia de ensino, não podendo desconsiderar a bel
prazer a exigência de leituras obrigatórias e avaliações. E talvez não seja
isso, pura e simplesmente, nem desejável. Mas se houver, em sala de aula, um
espaço, uma hora, vinte minutos numa sexta-feira que seja, para o professor
partilhar com seus alunos a sua paixão pela leitura, falar de seus livros e
autores favoritos e, fantástico, ler o primeiro capítulo de livros que ele tem
motivos para imaginar que falarão, de fato, à emoção e às entranhas de seus
guris e gurias, isso, sim pode angariar apaixonados pela leitura.
A gratuidade dessas leituras compartilhadas,
quando nada é exigido (nada de perguntas, nada de fichas), quando não há o medo
de não compreender, de não estar à altura do livro, essas leituras-presente, como as chama Pennac, e que podem ser feitas por
pais e professores – têm grandes chances de romper barreiras, chamar de volta
desertores e desfazer as caras mais amarradas. Do prazer gerado por essas
leituras compartilhadas (em casa, na escola) virá o prazer solitário da escolha
do seu livro, da leitura calada, secreta, só sua. E o que o autor quis dizer
não será uma atividade assustadora de extração de sentido, mas um diálogo e um
reconstruir subjetivo e livre.
Assim o espero e desejo, nesta
noite fresca de março.
Coluna para o site
Artistas Gaúchos
Março 2014
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